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Eles não bebem do mesmo café, nem brindam do mesmo vinho e tampouco dividem do mesmo trabalho. Eles não moram no mesmo bairro e não leem as mesmas notícias.Eles não se sabem como aqueles que vivem
a disciplina do já conhecido relógio dos relacionamentos.
Desconhecem o tempo das esperas e a espera por respostas. O que sabem é ser descanso e segredo
O que sabem é ser descanso e segredotão-somente se gostam.
Colecionam nas prosas, levezas que se conversam, esquinas que se namoram, muitos sonhos
absurdos e confissões que só as almas afins e os espelhos do quarto
podem saber do que a gente é feito.
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E não há ninguém que desconfie de suas verdadeiras identidades, não há quem descubra qual vento
os carrega, que medo os aprisiona, nem quem saiba de suas vontades sinceras declaradas
apenas na língua que criaram e que diz mais ou menos assim: Que a gente é feito pra caber onde não cabe.
Que a gente é feito pra ter o que não possui. Que a gente é feito pra viver como não vive.
Que a gente é feito para crer no que é incrível.
Que a gente é feito pra amar como não ama. Que merecimento é uma escolha.
E que pertencer vai mais além do que suspeitamos.
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Não, não há ninguém que possa imaginar que eles no dia-a-dia sejam um casal, apaixonados por
ausências. Ausências de cobranças e sentenças, julgamentos e pedidos de alforria. Ausência de regras,
de moralismo barato pesos do mundo, críticas alheias, rotinas, boicotes tantos e dias pela metade
Não esperam do outro aquilo que o outro já não seja. Não carregam pretensões
bobas de acordar juntos no dia seguinte, por já serem colo e carinho em qualquer lugar.
Apaixonados pela falta de incertezas, enamorados pelas levezas em comum.
Recusam ao suspeitarem de laços que possam vir a pesar e impedir
braços abertos e que impeçam os voos constantes
do pensar e do desejo.
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Ela dá nome aos seus imensos. Ele se aconchega no cheirinho de descompromisso dela.
E por morarem um no outro, não carecem de explicações. O mundo inteiro
lhes pertence e isso é o suficiente. Não há falta que incomode
nem distância que emudeça. O mundo inteiro
lhes cativa e isso é o importante.
Assim, não se trancam, não se impedem nem se cobram – mas se encantam
São cúmplices de suspiros e co-autores das vergonhas que repartem, dos prazeres que se permitem.
Seus únicos compromissos na agenda são com o acaso e com as singelezas
Só eles sabem de seus pecados, além e aquém das formas, nomes, papéis, pauta
e cenários que inevitavelmente vivem. São insuspeitos, ousados e discretos
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São inteiros em seus pedaços, mas são pequenos em seus inteiros. São também alérgicos ao morno
ao medo, ao mesmo e ao cinza que descolore a intensidade dos encontros
e que só eles sabem o remédio O que querem é essa leveza poisada no ar. O que buscam é a garantia
de que nada os prenda ou os garanta. O que esperam é não ser motivo de qualquer espera
Chamam isso de poesia. Por isso, são tão livres quanto condenados,
por celebrarem pecados e portas abertas sem ninguém saber.
Dividem a única culpa que carregam e que reconhecem:
a de não sentir culpa nenhuma.
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# Guilherme Antunes e Camila Heloíse #